sábado, 18 de junho de 2011

Lugre

                                           Foto muito antiga do "Ana Maria"

Apertei o último botão da “samarra” e dobrei o grande colarinho forrado de pele de carneiro de forma a proteger o pescoço e os ouvidos do penetrante vento gelado que fazia sentir-me miserável e indefeso, mas ali estava eu estendido de costas sobre o madeirame do convés que ainda fedia a estopa e piche da meticulosa calafetagem a que havia sido submetido no estaleiro.

Encoberto pelos dóris encastelados e já peados para a grande e aventurosa viagem, eu me perdi em pensamentos observando a magestosa mastreação apontando o céu, identificava as retrancas, as caranguejas, os gurupés e via as nuvens passando baixas dando-me uma sensação de movimento e propelindo minha imaginação para a experiência de estar navegando, navegando mar afora à aventura da vida, à aventura dos meus sonhos com os pescadores mais valentes da Terra Nova!...

Subitamente, uma pesada manápula fechou suas garras em torno do meu braço esquerdo com tamanha força e a dor foi tão lancinante, que gritei achando que haviam esmagado meus ossos!
“Anda cá, meu bandidinho, que vais sair daqui preso para a tutoria”, berrava o monstruoso contramestre cuspindo milhões de perdigotos no meu rosto! E lá fui eu arrastado convés afora até uma gaiúta à prôa, forçado pelas estreitas escadas abaixo até à câmara dos oficiais.

A câmara era um conforto só e estava quentinha para que os principes do mar e suas convidadas esquecessem as agruras da friagem externa, enquanto conversavam e sorviam vagarosamente seu chá, mordiscavam biscoitinhos recobertos de chocolate e tomavam licores reservados às divindades!
“Encontrei este miúdo escondido entre os dóris, senhor capitão! Penso que se preparava para sair conosco para o mar como já aconteceu com outro na viagem anterior...”
O velho comandante fixou seus olhos em mim e perguntou: “Que idade tens tu, meu rapaz?” E continuou: “Quem te trouxe para bordo?”

Procurei coragem no olhar misericordioso da linda e distinta senhora à minha frente, enquanto declarava que iria completar treze anos e que pagara vinte e cinco tostões ao chateiro para me trazer à borda e me levar de volta quando eu fizesse sinal, que não havia ninguém no portaló na hora que entrei e que não tinha nenhuma intenção de ficar para sair com o navio!

Uma chalupa do “Ana Maria” devolveu-me a terra depois de muitas desculpas e, enquanto saboreava lentamente o chocolate oferecido pela formosa e distinta dama, voltei-me admirando orgulhoso o magnifico lugre, último dos grandes bacalhoeiros a navegar exclusivamente à vela e que, um ano depois, desapareceria nas águas geladas da Terra Nova!


Publicado originalmente em Mukandas do Nelsinho - Primeira Versão

2 comentários:

Meg disse...

Nelsinho,
dupla alegria, uma pelo texto (adoro!) e outra pela ideia maravilhosa de resgatar a pujança do Mukandas Poéticas, que tantas belezas nos deu.
Faça isso com mais textos que ainda tenha.
Parabéns redobrados, querido.

Espero, com certeza, de que haja outras oportunidades logo, logo de ver e ouviraa a Laurinha.
É experiência estética de que nunca me esqueço. Adoro ela, também.
Um beijo.
(p.s. O nelsinho há de me dizer qual é esse DVD do Frank Sinatra. Outro "adouro!)
:-)

Luis C Nelson disse...

Obrigado, Meg!
É uma "barra" entremear textos, poéticos ou mesmo nem tanto, com a frieza técnica do meu elemento.
Estou empenhado em aprender a conciliar...
Bj